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Vai nascer uma cidade sem nome

Governo cria este ano mais de 22 mil lotes nas cidades do Distrito Federal
No Recanto das Emas, um novo bairro será criado só para os invasores. Os lotes sairão de graça para 2 mil 102 famílias com renda per capita de até meio salário mínimo, sem ter que ficar na lista do Idhab

Uma cidade será criada no Distrito Federal até o final de 2002. Só não vai aparecer no mapa cartográfico como uma nova localidade. Sua população, que pode chegar a 250 mil pessoas, estará disseminada em várias cidades do quadrilátero, em forma de novos bairros. A proposta do governador Joaquim Roriz é de terminar o seu governo criando 50 mil lotes. Quase a metade (22.179) deve ser liberada ainda este ano.
É muito. Daria para abrigar, com sobra, por exemplo, toda a população de Taguatinga. Mas é pouco para um governo que tem uma lista com 113 mil famílias carentes à espera de moradia. Considerando-se que em média cada família tem três filhos, seriam 565 mil pessoas na fila. Como se não fosse o bastante, ainda há a população da classe média, que não aparece catalogada em listas mas também será beneficiada pela nova política habitacional.
O parcelamento das áreas verdes do Park Way seria uma dessas opções. O governador Joaquim Roriz briga para que o Projeto de Lei Complementar 451/99 seja aprovado na Câmara Legislativa. Moradores, ambientalistas e deputados de oposição juntam forças para tentar impedir a criação de até 200 novos lotes, de 20 mil m² cada um. Como cada lote pode legalmente ser fracionado em oito unidades de 2.500 m², o Park Way ganharia 1.600 novos lotes. Atualmente, o bairro tem 1.180 lotes regulares.
A pressão por moradia também surge em forma de invasão em áreas menos nobres, afastadas do Plano Piloto. O Recanto das Emas foi palco, nos primeiros meses do ano passado, do crescimento rápido e assustador das invasões das quadras 601 e 605. O amontoado de barracos de madeirite não parava de crescer e, em pouco tempo, quase que dobrou. Se, em janeiro, num primeiro levantamento do Idhab (Instituto de Desenvolvimento Habitacional do DF), eram 2.512, menos de três meses depois, 4.200 famílias moravam na invasão.
Era gente de todas as cidades do Distrito Federal que abandonavam barracos em fundo de quintal e se aventuravam na tentativa de conseguir um lote. Para a metade dos invasores, a aventura deu certo. Um novo bairro será criado só para eles, no Recanto das Emas. O lote sairá de graça para 2.102 famílias, desde que a renda per capita não seja maior que meio salário mínimo.
A remoção da segunda maior invasão do Distrito Federal (perde apenas para a Estrutural, entre Guará e Taguatinga) deve demorar mais 20 dias. Mas as famílias que moram há mais de cinco anos no DF e nunca tiveram imóvel se deram bem. Passaram na frente de quem não teve coragem de virar invasor e espera há anos por um lote na lista oficial do governo. O novo bairro para onde vão se mudar já é realidade.
O garçom desempregado João Crespim Ferreira, 33, a mulher Eleni, de 22, e os dois filhos pequenos - Ana Carolina, 4, e João Victor, um ano - integram o grupo de felizardos. O barraco foi derrubado no mesmo dia em que começou a ser construído na quadra 511 do Recanto das Emas. ''Foi muita sorte e a mão de Deus'', diz Crespim. Ele conta que morava na invasão havia apenas quatro meses. Antes, pagava aluguel, na quadra 804 do Recanto das Emas.
SERÃO DOADOS
O diretor do Idhab, João Carlos de Medeiros, explica que os invasores do Recanto das Emas receberam atenção especial pelas condições paupérrimas em que viviam. ''Foi um programa de socorro especial. Eu acredito que todos os lotes serão doados, porque são pessoas de baixíssima renda'', diz ele. No novo bairro, de ruas sem pavimento, iluminação pública e rede de esgoto, as famílias furam buracos para construir fossas sépticas e erguem como podem os barracos de madeirite.
A questão ambiental é o principal argumento utilizado pela comunidade para barrar o parcelamento na área de preservação (APA) Gama Cabeça de Veado, onde fica a maior parte dos lotes do Park Way e os mananciais da região, como os córregos Mato Seco e Cedro, que se encontram com o Ribeirão do Gama para formar o Lago Paranoá. Moradores garantem que a vazão desses córregos vem diminuindo e afloramentos de água secando.
''Esse adensamento não é necessário. Não há falta de moradia para a classe média'', critica a promotora de Defesa da Ordem Urbanística, Ana Luíza Leão Osório. No entendimento da promotora, a classe média ainda tem espaço para moradias em diversas áreas já criadas, como Águas Claras, em Taguatinga, Sudoeste e o Condomínio Chapéu de Pedra, regularizado e ainda em fase inicial de parcelamento.
Apesar de tantas oposições, o governo insiste. O projeto voltará à pauta de votação tão logo o estudo de impacto ambiental (EIA-Rima), exigido pelo Ministério Público do Distrito Federal e Territórios, fique pronto. Por trás de tanta insistência, vestígios dos reais interesses do governo: o dinheiro do negócio. Com a venda dos lotes, o GDF pode arrecadar cerca de R$ 128 milhões.
''O Park Way foi criado para ser um bairro, uma zona-tampão, de baixa densidade e de proteção ao Plano Piloto. Não para ser uma cidade'', reclama a arquiteta Alda Rabello Cunha, do Conselho de Planejamento do Núcleo Bandeirante. Ela explica que muitas manchas (desenho dos novos lotes no mapa do Park Way apresentado pelos técnicos do governo na reunião do Conselho de Planejamento, em 24 de novembro de 1999) vão acobertar cercamentos irregulares espalhados pelo Park Way.
VINTE MARACANÃS
E não são poucos as invasões no bairro: cerca de 500, segundo estimativa da Administração Regional do Núcleo Bandeirante, responsável pela área do Park Way. A advogada Maria Joseph Soares, 52, é apontada pelos fiscais como uma das maiores invasoras de terra pública no bairro. O chefe de fiscalização, Yedson Guerço Faria, calcula que Maria Joseph esteja ocupando 160 mil m², nos fundos das quadras 27 e 28. Quase 20 campos de futebol do tamanho do Maracanã.
A Terracap informa que a terra é pública, mas a advogada alega ter direito à posse da gleba. Ela tem em mãos, desde 9 de dezembro do ano passado, uma liminar concedida pelo juiz Roberval Casimiro Belinati, que lhe confere a posse precária da terra. ''Sou filha de posseiro'', explica Maria Joseph, que se diz ameaçada de morte pelos moradores das mansões vizinhas. ''Eles querem tomar a minha terra.''
Moradores da vizinhança garantem que não havia nenhum posseiro antigo na terra que Maria Joseph ocupa atualmente. Segundo eles, a advogada tomou posse do local há cerca de nove anos. Construiu uma pequena casa de alvenaria e contratou Severino Medeiros, 49, como caseiro. É ele quem cuida das três vacas da patroa e da minguada roça de mandioca, abacaxi e milho. Salário de um mínimo que ele não recebe há quatro meses. Come na casa dos vizinhos.
''Pra mim, a Maria Joseph é uma invasora como outra qualquer. Está de olho na especulação imobiliária'', diz o fiscal Yedson Guerço, da Administração Regional do Núcleo Bandeirante. A Procuradoria-Geral do Distrito Federal tentar cassar a liminar e reaver a terra. Caso Maria Joseph ganhe na Justiça o direito de ficar com a terra em que ocupa, ela poderá parcelá-la em oito lotes de 20 mil m² ou em 64 lotes de 2.500 m². E arrecadar perto de R$ 5 milhões.

Adeus, chácaras

Colônia vira bairro, Santa Maria ganha 2 mil 600 casas e mais 55 mil pessoas vão para Samambaia
A mesma especulação imobiliária que ameaça o Park Way transformou em bairro o setor de chácaras da Colônia Agrícola Vicente Pires, em Taguatinga. Mais de 10 mil casas foram construídas numa área também sensível, do ponto de vista ambiental, próxima ao Parque Nacional de Brasília (Água Mineral) e por onde passam os córregos Vicente Pires, Cana-do-Reino, Vereda Grande, Arniqueira e Cabeceira do Valo.
As colônias agrícolas Vicente Pires foram criadas em 1984, para abrigar chácaras de três hectares. A região poderia ser cultivada, mas a ocupação deveria ser de baixa densidade, para não impermeabilizar o solo e prejudicar o meio ambiente. A especulação venceu. Cerca de 70% das antigas 358 chácaras da região foram parceladas em lotes de 800 metros. Hoje é um bairro irregular da classe média.
''Não há mais retorno. Tudo se transforma em condomínio'', diz Edson Bezerra Cabral, um antigo chacareiro na região e presidente da Associação dos Produtores e Moradores da Colônia Agrícola Vicente Pires. ''Se deixar por conta do povo, vão morar até dentro dos córregos, em palafitas. Por isso, sou favorável à regularização da colônia agrícola, para que pelo menos fique do jeito que está.'' Carlos Vieira

Antônio Carlos: receber o lote foi melhor que ganhar na loteria
A ilegalidade, no entanto, não assusta especuladores nem as dezenas de compradores que constroem suas casas na pressa. Ninguém vê o governo destruindo as casas grandes, de dois ou mais pavimentos. ''Algumas pessoas estão sendo privilegiadas, tendo tratamento diferenciado do resto, os honestos, que nunca invadiram terra pública'', diz a arquiteta Tânia Batela, que integra o Conselho da Cidade no Instituto de Arquitetos do Brasil (IAB-DF).
Para tentar frear a especulação, o Ministério Público pretende incluir os nomes dos compradores de lotes irregulares nos processos de grilagem de terra pública. ''Há dez anos, as pessoas até podiam comprar lotes sem saber que eram irregulares, mas hoje não. Estão incorrendo na prática de crime'', avisa a promotora Ana Luíza Leão Osório, de Defesa da Ordem Urbanística.
MELHOR, SÓ LOTERIA


A infra-estrutura básica do novo bairro no Recanto das Emas só fica pronta daqui a dois meses, mas ninguém reclama. ''Eu achava que iam botar a gente pra correr de lá (da invasão). Quando me falaram que iam me levar para meu lote, nem acreditei. Foi melhor que ganhar na loteria'', comemora o pedreiro Antônio Carlos Vieira de Andrade, 27 anos, pai de três meninos.
No lote de 112,5 m², com endereço pintado nos piquetes de madeira fincados no chão, vão morar duas famílias. A cunhada dele, Dilma Correia Barbosa, 32, é mãe solteira de sete filhos.
Além do Recanto das Emas, em muitos lugares do DF o traçado de ruas dos novos lotes também é realidade. A paisagem das áreas verdes do cerrado, que dividia Santa Maria em duas partes, deu lugar às máquinas. Em breve, o lugar será preenchido por 2.600 casas populares, construídas em regime de mutirão com recursos financiados pela Caixa Econômica Federal.
Pessoas inscritas na lista do Idhab estão sendo convocadas para apresentar documentação. São elas que vão morar nessas habitações. ''Até o final deste ano, vamos atender 12 mil famílias'', planeja o presidente do Idhab, João Carlos de Medeiros. A maior concentração de novos lotes para a população de baixa renda está prevista para Samambaia.
As torres que sustentam as linhas de alta tensão serão compactadas e a área central da cidade deve ser dividida em até 11 mil lotes. Os invasores da favela da Estrutural podem ser contemplados com parte desses terrenos, que vão abrigar casas e apartamentos populares.Supondo-se que cada família tenha cinco pessoas, Samambaia pode ganhar 55 mil moradores, quase a população da cidade de São Sebastião.
Uma população de 55 mil pessoas significa aumentar em quase um terço (32%) o número de moradores de Samambaia. A secretária de Habitação, Ivelise Longhi, e a presidente do IPDF, Eliana Klarmann, foram procuradas durante duas semanas pelo Correio, mas não deram retorno às ligações. Assim, resta a dúvida: de onde virão todas essas pessoas? De repente, boa parte já está mesmo em Samambaia, camuflada em barracos no fundo de quintais. (Rovênia Amorim)

Entrevista / Mônica Veríssimo ''A contaminação pode comprometer a bacia do Paranoá''
Cristina Ávila Da equipe do Correio
A maior parte do Park Way está dentro da Área de Proteção Ambiental (APA) Gama-Cabeça-de-Veado, onde existem outras unidades de conservação sobrepostas. As sobreposições são por causa da importância do cerrado, córregos e nascentes que ajudam a formar a bacia do lago Paranoá. Retalhar a região em lotes, sem conhecimento das conseqüências da ocupação desordenada, pode causar problemas para pesquisas científicas, fauna, flora e para o abastecimento de água do Distrito Federal.
Um santuário com importância ecológica fundamental para os habitantes do DF, que Mônica Veríssimo, pesquisadora o Instituto de Geociências da Universidade de Brasília, defende que seja respeitado. Segundo ela, esse complexo ainda precisa ser mais bem conhecido. ''Estamos reivindicando o zoneamento ambiental da APA'', ressalta.
Correio Braziliense - Por que tanta preocupação com a ocupação do Park Way?
Mônica Veríssimo - O Park Way está dentro da Área de Proteção Ambiental Gama-Cabeça-de-Veado. A APA foi criada para a manutenção da integridade hídrica do Lago Paranoá. O Park Way é a área de maior consumo de água per capita do Distrito Federal. Consumo diário de 1 mil litros por pessoa. Porque são grandes lotes, com piscinas, gramados, moradores com vários carros. Plano Piloto e o Lago Sul consomem uma média de 400 litros per capita. Além disso, ainda existe o problema das fossas, que ameaçam o lençol freático. O lençol tem ligação com outros braços, outros lençóis. A contaminação por fossas pode comprometer a bacia do Paranoá. Esse é o agravante. E tem a fauna, a flora. Todo o complexo sistema ecológico.
Correio - A construção de novas casas também trazem prejuízos à impermeabilidade do solo, não é?
Mônica - Sim. Os problemas de adensamento são inúmeros. A divisão dos 2 hectares de cada lote em oito frações aumenta em 875% a impermeabilidade do solo. Por causa das novas construções, que não deixam a água voltar para o solo, comprometendo a oferta d'água. Multiplicada por 200 novos lotes, a impermeabilidade será 1.040% maior.
Correio - As previsões de problemas de abastecimento são para um futuro distante?
Mônica - Cada vez mais a APA e seu entorno são ocupados. Os técnicos da Reserva Ecológica do IBGE já estão sentindo a falta de água. Na última seca, pela primeira vez o Córrego do Roncador secou. Também secaram alguns outros córregos da bacia do Taquara, que é afluente do Ribeirão do Gama, localizados na reserva. Vimos irregularidades em relação ao descumprimento do Código Florestal, que prevê 30 metros de área de preservação permanente na margem de rios e córregos, em 12 dos novos lotes previstos pelo governo.
Correio - Mas o governo garante que serão tomados cuidados. Seu planejamento baseia-se em Estudo e
Relatório de Impacto Ambiental (EIA/Rima).
Mônica - O zoneamento ambiental não foi feito, e não será apenas um EIA-Rima que vai tratar de toda uma complexidade existente dentro da APA. Os EIA-Rima são levantamentos de dados localizados, para empreendimentos (construção de postos de gasolina, por exemplo). Não são capazes de prever toda a complexidade ambiental. Eles são apenas justificatórios dos empreendimentos.
Correio - Não têm credibilidade?
Mônica - Vários professores da UnB hoje se recusam a fazer esse tipo de trabalho. Muitas vezes, as colocações técnicas são desconsideradas pelas empresas que encomendam o EIA/Rima. Existe um estudo do Ibama (Instituto Brasileiro de Meio Ambiente e Recursos Naturais Renováveis), chamado Avaliação de Impacto Ambiental, de 1995, que já levanta essa preocupação.